Por um instante, faço uma proposta a você – imagine um lugar onde o cheiro de urina impregna o ar. Imagine que esse cheiro forte e bem característico permeia o seu dia todo, enquanto estiver desenvolvendo o seu trabalho e a única possibilidade de se livrar dele é quando encerrar as suas atividades, ir para casa e provavelmente tomar um banho. Provavelmente porque poderia acontecer duas situações: o cheiro da urina poderia ter penetrado as suas narinas e mesmo estando em um lugar onde esse odor não se faça presente, sua lembrança continua a importunar, ou de tanto estar exposto a esse odor, esse aroma se torna comum, tolerável e talvez até aceitável (agradável creio que não teria como mesmo) e, portanto, deixa de incomodar e dependendo de cansaço, o banho poderia ficar para um outro momento.
Na Idade Média, certamente essa era a realidade de muitas pessoas na cidade de Grasse, situada na região da Provença, na França. A especialidade da cidade era o curtimento de couro, um processo que envolvia o uso de urina animal e outros produtos para ajudar na remoção do excesso de gordura e pelos e para amolecer a pele.
Segundo a guia que nos recebeu no Museu Internacional da Perfumaria, com o intuito de camuflar esse mau cheiro, foram instaladas pequenas saídas de perfume na cidade que eram produzidos utilizando as flores disponíveis na região, como lírios, murta-comum, lavanda, rosa e jasmim. Hoje essas saídas não existem mais, não são necessárias e fazem parte da história. Além disso, essas mesmas flores também produziam perfumes que foram utilizados pelos curtidores de couro e mestres em fazer luvas para disfarçar o forte odor do couro.
Com o passar do tempo, luvas perfumadas espalharam seu odor pela França e outro países e caíram no gosto popular. A atividade de elaborar perfumes, complementar a atividade do curtume do couro, passou a ser a principal e tomou tamanha proporção que os curtumes deixaram de existir e hoje a cidade ostenta o título da capital mundial do perfume.
Atualmente a cidade de Grasse e os mais de dez vilarejos que a cercam formam a Pays de Grasse, nome da região cuja característica é ser coberta por plantações de oliveiras e de flores. Desde o século XVI são essas flores que alimentam a indústria da perfumaria e continuam sendo até hoje a fonte de matéria-prima para muitos perfumes consolidados e apreciados no mundo todo por sua fragrância, como por exemplo, as marcas Chanel, Dior e Givenchy.
Em 2018, a cidade que é o centro da tradição francesa na arte de fazer perfumes obteve um reconhecimento merecido e as técnicas de perfumaria de Grasse foram declaradas Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.
Com base nesse relato, convido você leitor(a), para refletirmos sobre duas questões que particularmente considero interessantes e intrigantes, mas reconheço que considerá-las assim se deve ao fato de estarem relacionadas a dois aspectos do uso da Aromaterapia: um no campo físico e outro no campo sutil.
A primeira questão (campo físico) diz respeito ao fato de ter o “aroma” como um patrimônio imaterial da humanidade. O título foi atribuído as técnicas e acredito que vale destacar que elas englobam desde o cultivo das plantas, cuja finalidade específica é a produção de perfumes, a forma como essa matéria-prima é processada e a delicada e equilibrada arte da escolha e da proporção na composição das fragrâncias. O objetivo de empregar tais técnicas é a criação de aromas incríveis, ou seja, o produto final de todo esse esforço é obter perfumes que encantam pessoas de todos os lugares, que tem a capacidade de infundir uma sensação agradável ao usá-lo e assim contribuir para tornar nossas experiências ainda mais significativas, criando memórias olfativas que podem perdurar por uma vida toda. Sem essas técnicas, talvez não fosse possível obter a qualidade desejada para esse perfume (sabemos que muitos perfumes empregam componentes sintéticos em sua produção, seja uma fração ou em sua composição total, o que é cada vez mais comum). Porém, sem esse produto final, um aroma único, característico e extraordinário, essas técnicas não receberiam tal reconhecimento. Por isso admito que gosto de pensar (e creio que podemos afirmar) que a declaração da Unesco é como uma certificação e ao mesmo tempo uma gratidão pela importância do aroma (do olfato) em nossas vidas.
Se você já teve a grata oportunidade de inalar um óleo essencial de jasmim (Jasminum officinale), pinheiro da Sibéria (Abies sibirica), benzoin (Styrax benzoin) ou vetiver (Vetiveria zizanioides), para mencionar alguns, sabe que esse título já se faz por merecer há muito tempo – são verdadeiros patrimônios da humanidade.
A segunda questão (campo sutil) está relacionada com desenvolvimento, parceria colaborativa e esperança. A cidade de Grasse saiu da posição de um local fétido para ser a capital da fragrância, de um lugar que ninguém gostaria de visitar para uma região que recebe milhares de turistas do mundo todo, que se deleitam não só com os aromas das mais diversas lojas de perfumes espalhadas pelas ruas estreitas, mas também por suas boulangeries (padarias) e confeitarias – praticamente um salto quântico!
Quando visitamos a cidade em 2016 havia umas trinta perfumarias ativas e populares, criando e exportando seus produtos, compartilhando não só esse mesmo espaço, mas também interesses comuns para que a indústria permaneça com o destaque recebido. Atingir um padrão de qualidade considerado excelente é importante, mas investir esforços na manutenção desse patamar requer um trabalho conjunto.
Rosa de maio ou a rosa de Grasse (Rosa centifolia) e o jasmim (Jasminum officinale) são as flores dessa cidade e a matéria prima para extração de dois importantíssimos óleos essenciais para a Aromaterapia sutil (ou vibracional). Segundo Zeck, o aroma da rosa nos move do isolamento para a consciência de que somos amados, além de nos direcionar para o amor incondicional, promovendo o perdão quando este se faz necessário. O aroma do jasmim penetra na nossa alma apaziguando os medos mais arraigados e nos leva a um estado de confiança resultante da fé e da nossa capacidade de acreditar em nosso potencial, além de trazer expectativas positivas para o futuro.
Cidades, como casas e pessoas, são um organismo vivo, criando a sua história a cada dia, apresentando possibilidades para um desenvolvimento constante e para aprimorar cada vez mais o seu campo energético. O crescimento, amadurecimento e aperfeiçoamento de uma cidade reflete essas mesmas qualidades dos seus cidadãos, o individual atuando no coletivo, a história de cada um compondo o destino do lugar. A rosa e o jasmim embalaram o processo de transformação da cidade de Grasse ao longo de todos esses anos e compõem uma parte intrínseca dessa história. Pensar nesse aspecto traz uma lição, pois enfatiza a necessidade e importância da paciência para que a transformação necessária ocorra de forma completa e duradoura e também traz uma doce e aromática esperança ao deixar muito claro que não estamos sozinhos nesse processo, temos o suporte de seres especiais como essas flores, que generosamente nos fornecem óleos essenciais para os perfumes e para aromaterapia e nos concede um aroma tão especial que é como um abraço, dentro do qual é perfeitamente plausível sentir e quase possível ouvir um sussurro que reforça: “Eu te acompanho! Vamos em frente! Tenha fé!”
Que os aromas necessários para o seu aperfeiçoamento cheguem até você e possam embalar a sua história.
Até a próxima!
Namastê!
Kátia Veloso
Educadora, Aromaterapeuta e Terapeuta Maha Lilah.
¹ZECK, R. The Blossoming Heart, Aromatherapy for healing and transformation. Australia: Aroma Tours, 2004.